HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica (Excertos). Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Barcarolla, 2011.

Ciência da Lógica (Excertos)Para iniciar as comemorações do bicentenário de sua primeira edição, a Editora Barcarolla lança uma seleção de excertos significativos da Ciência da lógica, de Hegel. Escrita entre os anos 1812 e 1816, a obra figura como um dos pilares fundamentais da filosofia alemã e, até então, não havia sido traduzida para o português. Os textos foram selecionados e traduzidos pelo professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo Marco Aurélio Werle. A importância desta obra para o marxismo é descrita da seguinte forma por Vladimir Lênin nos seus cadernos de estudo da dialética hegeliana, escritos em 1914 em Berna (Suiça): “Não se pode compreender plenamente O capital de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista o compreendeu!”.

Apresentação de Marco Aurélio Werle

A Ciência da lógica [Wissenschaft der Logik] de Hegel foi publicada pela primeira vez em Nürenberg, junto ao editor J. L. Schrag, em três partes, entre os anos de 1812 e 1816. O primeiro volume (a lógica objetiva) foi dividido em dois livros: a “doutrina do ser” (1812) e a “doutrina da essência” (1813) e o segundo volume (a lógica subjetiva) contém a “doutrina do conceito” (1816). A tradução que ora apresentamos incide sobre uma seleção de alguns trechos dessa obra de Hegel, o que corresponde aproximadamente a um quarto do texto integral. Procurou-se contemplar as principais características e etapas segundo as quais se desenvolve o pensamento lógico de Hegel. Inicialmente foram traduzidos os trechos nos quais Hegel explicita o que denomina como sendo “o lógico” [das Logische], isto é, o elemento lógico, aquilo que perfaz a natureza da lógica. Hegel compreende por “lógica” não um tratado sobre uma disciplina específica, sobre a lógica como ciência das regras do pensamento ou até mesmo sobre uma “nova” lógica, algo como uma lógica dialética, como pretendiam especialmente os pós-hegelianos e certos filósofos marxistas. Pelo contrário, sua reflexão se move no terreno do puro pensamento (tanto subjetivo quanto objetivo), legado pela história da filosofia e que somente é reordenado e redimensionado em sua obra em termos especulativos, conforme lemos no início da Enciclopédia das ciências filosóficas: “A lógica especulativa contém a lógica anterior e a metafísica, conserva as mesmas formas de pensamento, leis e objetos, mas ao mesmo tempo as desenvolve e transforma com categorias ulteriores” (Enciclopédia das ciências filosóficas, Werke, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, vol. 8, § 9, p. 67).

Assim, o empreendimento hegeliano pode ser considerado como uma metafísica ou uma espécie de “metalógica”. E a lógica se converte na ciência das puras determinações do pensar [reinen Bestimmungen des Denkens]. A lógica perfaz a primeira parte do sistema hegeliano, sendo a segunda a filosofia da natureza e a terceira a filosofia do espírito. Cada uma dessas partes da filosofia, compreendida como sistema, é, no entanto, um círculo acabado em si mesmo e remete a um círculo maior enquanto manifestação da Ideia. Inicialmente, a Ideia é tomada como determinidade pura, no elemento lógico abstrato do pensamento; a seguir assume a forma da exterioridade, quando passa pela natureza e, por fim, em terceiro lugar, reencontra sua existência em si e para si no espírito. O reino espiritual ou a vida cultural se desenvolve tanto no plano puro do pensar quanto no terreno fenomênico, de modo que a Ideia está tanto “fora do tempo” quando “no tempo”, pois, para chegar a ser para si o que é em si, ela necessita operar um juízo absoluto de diferenciação de si mesma, tem de entrar na existência e ser ativada. Diante disso, a lógica perfaz o projeto de pensar as categorias do pensamento a partir delas mesmas, tomadas não apenas como forma, mas também como conteúdo, em seu processo puro de gênese e de constituição como pensamento, sem que se deva assumir pressupostos previa ou exteriormente fixados sobre o que seja o pensamento e sobre o que seja a própria lógica. Nesse domínio instaurado pelo ato puro de pensar, também não se pode partir de um começo previamente dado e definido, de um ponto de partida ou âmbito temático delimitado desde o princípio. A lógica não opera como as demais ciências, que já possuem seu objeto previamente fixado. Esse é, em linhas gerais, o assunto dos primeiros textos dessa coletânea, dedicados ao conceito geral da lógica e ao tema do início da lógica, que há de ser mediado e imediato ao mesmo tempo.

Devido ao âmbito no qual se move o pensamento hegeliano, deparamos em sua lógica com uma linguagem inegavelmente complexa, que, no quadro da obra hegeliana, atinge aqui um ponto culminante. Hegel observa que a maneira de apreender o espírito lógico que perpassa a terminologia abstrata das noções de pensamento se assemelha ao modo como se aprende uma língua por meio das estruturas gramaticais, pelas quais vive e respira essa mesma língua (Ciência da lógica, Werke, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, vol. 5, p. 55-56). Essa complexidade do pensamento hegeliano não é idiossincrática, não advém de uma imposição pessoal, como quer fazer crer, entre outros, Schopenhauer, e sim decorre do assunto, da lógica, que é “a ciência a mais difícil, pois não se ocupa com intuições nem com representações sensíveis abstratas, tal como a geometria, mas com puras abstrações e exige a força e o treinamento para que consigamos nos retrair no puro pensamento, a fim de apreendê-lo e nele se mover” (Enciclopédia das ciências filosóficas, Werke, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, vol. 8, § 19, p. 67.). E essa complexidade não pode ser evitada na tradução para o português, sob pena de falseamento da mensagem do original. Acrescente-se a isso as dificuldades naturais de transposição entre a língua alemã e a portuguesa. O leitor terá de fazer um esforço de aproximação, de penetração no fluxo do pensamento hegeliano e na escrita particular de Hegel, a qual instaura a verdade no próprio processo de apresentação do conteúdo. […]

Paulo Roberto Konzen